terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Xica, Mi24



Sr fulano de tal...


Um dedo apontou para o fundo do parque. Apontei de seguida o meu olhar seguindo o rasto do gesto. Não cheguei a meio, o meu olhar dividia-se entre a Xaleca despida de tudo quanto a identificava á distância. Nesse momento senti que iria ter de a libertar de mim. Não, não podia estar com algum tipo de apêgo por um camião que nú, já não era a minha base portátil, abrigo e palco de tantos sentimentos que se nos atravessam ao longo do dia, frustrações, cenas que só grinaldas sonoras as tornam tão difentes...em suma, havia vivido ali três anos... Não, não podia ser e como não podia ser virei costas. A vida já me ensinou o suficiente para que eu sinta que doravante as despedidas serão mais constantes, menos dolorosas, vamos endurecendo e só o que nos realmente nos marca nos doi ou se manifesta por algum sentimento triste ou de perda. E naquele momento pensei que nesse momento voltasse a olhar para trás, nada nos pertence e o que vale é o que levamos cá dentro. Por isso segui...mas alheio ao sol, alheio ao dia que era.
Segui os passos que me levavam ao fundo do parque. Senti que quem ía comigo agitava os lábios como se estivesse a falar e estaria por certo, mas dentro de mim naquele momento só existia uma paz muito grande, um silêncio avassalador que tudo absorvia e não me lembro do momento de ter começado de novo a minha ligaçao ao exterior, foi lenta, cromática e só me senti parte do mundo quando o mesmo dedo apontou para um camião que parecia estar mesmo ali com aquela expressão: - Olha, este gajo é levezinho...pode ser que seja este que eu tenha de abrigar.
Olhei na esperança de a matricula acabar em 7, mas não...estavam esgotadas e vi-me assim destinado á Mi-24.Nasci a 24 de julho, o meu irmão trata-me carinhosamente por 24 assim como á filha dele, minha linda sobrinha nascida tambem a 24 de Julho, sob o mesmo signo do tio e até o mesmo signo do zodíaco Chinês, ambos do ano do Tigre. Escusado será dizer que a miuda tem parecenças muitas comigo mas sobretudo a forma de estar...sempre a rir e a cantar mesmo que lá dentro possa não ser assim. Menos mau e o destino até tem destas coisas...Mi24.



Subi com calma o estribo, sentei-me e deixei-me estar dois minutos a olhar em volta, o interior do refúgio do meu corpo e do meu pensamento quando quero estar só, quando estou só ou quando simplesmente não estou. Aos pouco lá fui arrumando a cabine á minha maneira, pondo de lado o que supostamente não precisaria trazendo apenas o material e objectos que preciso para trabalhar e para me equilibrar quando a hora é de lazer e eu me encontro fora do país. O cheiro a novo invadia-me, lembrando que a 07 era parte do passado e que agora era a vez de me dedicar á Mi24.
Com o cair da noite fui ultimando tudo para iniciar a marcha na manhã seguinte.
A serenidade transmitida pela Xica na subida até Vilar Formoso fez-me acreditar que a viagem seria de descoberta, de adaptação aos instrumentos mas tranquila...e foi-o. Curiosamente cinco mil quilómetros exactos separaram a nossa saída do parque da nossa chegada. A viagem primeira da Xica levou-a ás baixas temperaturas da Alemanha, ás estradas ladeadas por restos de neve, algum gelo negro e também alguns traçados sinuosos em estradas nacionais Alemás. Logo na sua 1ª viagem, já na fase de regresso, deslizamos tranquilamente na B31 de Geisingen a Freiburg, passando a fantástica floresta negra que antecede Freiburg com uma sensação de segurança mas ao mesmo tempo de raça e confiança. Não encontraria muitas palavras que definissem esse traçado onde os olhos se dividem entre admirar a beleza envolvente do traçado e a perigosidade rodoviária do traçado. Serpenteando a floresta, subindo e descendo sob a noite já calada e instalada, abeiramo-nos do ponto que tem tanto de perigoso como de belo, numa fase em que a estrada, ora de um lado ora de outro acompanha o trajecto de um comboio muito lento, cuja linha serpenteia quase a par com a estrada. A beleza paisagistica permite admirar a marcha elegante dos veiculos, uns a subir e outros em sentido contrário, há uma forte informaçao visual de natureza presente, casas de construção tradicional que nos remetem para paisagens idílicas dignas de postal e sentimo-nos parte daquele quadro. A segurança que senti nas curvas com gelo permitiram uma sensação agradável de se sentir.
A estreia da Xica marca uma semana em que meu pai se debate com graves problemas de saúde, e a fé existe mas já vivi o suficiente que só fé e esperança em certos casos não chegam. Fiquei um pouco confuso e ao mesmo tempo assustado, embora não viva com o meu pai desde os 5 anos, é meu pai e claro, tenho o meu avô, homem que é pai, irmão, amigo também já em fase descendente na vida. Assustam-me as frases que me dizem para me conformar e invade-me a tristeza quando não penso em nada a não ser na realidade crua e dura. Já é na Xica que me escondo de um mundo para viver o meu...que se baseia quasde em escrever , ler ou então estar comigo mesmo de viola na mão a aguardar que o sobressalto me deixe adormecer ou que o cansaço venha e me arraste para a cama sem pensar, sem lembrar e me deixe pelo menos dormir. Cada vez mais me sinto isolado e contudo vou tentando não contar com ninguém...as pessoas chegam e ficam e outras partem, magoam e á distância não podemos agarrar-lhes e pedir que fiquem. Esta Renault ajudar-me-á.
Claro que fisicamente há diferenças entre a Daf e a Renault mas isso a mim e para este efeito não me importa, não vou entrar em comparações entre a Xaleca e a Xica uma vez que é a forma como me sinto ao trabalhar nelas que interessa. No fundo é um camião como qualquer outro só que quando as cortinas se fecham deixa de ser um camião e passa a ser um lugar onde pernoito, penso, escrevo, durmo...um espaço que tem de estar em sintonia comigo mesmo para que a ausência não se note tanto. Faço agora da Xica o que fiz da Xaleca, um espaço meu em qualquer País da Europa, um pequeno espaço ao meu dispôr onde mantenho os significados e referências de forma a sentir-me bem e confortável.
Esta semana voltaremos á Alemanha. Saíremos por Elvas para Badajoz, mostrarei á Xica pela primeira vez a En4 que gosto de fazer pela forte presença visual de tudo o que caracteriza o Alentejo. Passaremos Vendas Novas, Montemor, Arraiolos, Estremoz, Borba...roçaremos Vila Viçosa que traz tão doces recordações pela paz que sempre me rodeou quando a etapa diária terminava por lá. Elvas é o ultimo grande suspiro e Badajkoz estará á vista, mas antes paragem na fronteira do Caia para levar jornais do dia para ler durante a semana. A Xica desfilará elegante e segura rumo ao destino que nos traçarem a cada viagem, vou acreditar nisso, quero acreditar nisso. E já sem história que anteceda o primeiro arranque, já de cofre vazio e sem nada para contar ou lembrar, esperaremos calmamente o primeiro grande momento na Xica...porque há momentos que ficam para a história, uns piores que outros, mas se os fôr escrevendo é porque o fim não foi nem será, esperemos, um desses momentos que realmente nos marcam.
Começemos do zero. Nunca deveria ter sido nunca.

6 comentários:

Anónimo disse...

boas viagens e muita sorte com a tua nova camioneta.

cumps

Anónimo disse...

Emocionas-me sempre com as tuas palavras. Escreves de uma forma verdadeiramente poética, mas com descrições tão precisas, que quase parece que vou contigo de viagem e serpenteio a floresta negra!
Só uma pessoa muito especial consegue descrever, dessa forma, o que lhe vai na alma!

Beijo com carinho,

Mi

P.S. A Matricula da xica tem uma conjugação (quase) perfeita !

P.S.2- Muita força, meu amigo. GMDT

AmSilva® disse...

Uma nova etapa começa , com tanto de igual e ainda mais de diferente!
Pela Mi24 que mantenha sempre as rodas todas no chão e os plásticos direitinhos!!
Pelos teus familiares, a Vida segue sempre o seu rumo, independentemente dos nossos gostos ou desejos, por isso, para ti força e Paz!!
Abraço

pbaptista disse...

que tudo te corra pelo melhor a ti e a tua "nova companheira"que por entre altos e baixos da vida façam nuitas e boas viagens sem problemas...
curiosamente em miudo muitas vezes fiz esse trajecto da n4 de dia ou de noite com o meu pai numa renault com xico que ele estreada por ele em 84 e que o acompanhou até quase a reforma...

um grande abraço

Anónimo disse...

Olá Joca,



Finalmente consegui ir ao teu blog e, surpresa fiquei com 3 textos publicados (desde a ultima vez que te li).

Gostei de os ler e, sei que na realidade uma xaleca e uma xica são para ti a tua casa, o teu espaço e parte do teu mundo.

Confesso que fiquei um pco triste pois senti tristeza e saudade nas tuas palavras em alguns momentos da minha leitura sobre a tua escrita.



De quem te quer mto bem fica um bjinho de verdadeira amizade e admiração pela pessoa que és.

Bjinho de grinaldas sonoras da tua sempre amiga Sara.

JP disse...

Espero que haja melhoras rápidas do teu pai.

E boas viagens agora na casa nova
Abraços