sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Tarde encoberta com sol

  

  Sr Fulano de tal
  
   Maldito despertador.Adormeceste-me de novo e logo hoje..

   Inicio desta forma mais esta diarreia mental que me escorre em forma de cordel para a ponta dos dedos. Os dedos, esses culpados. Inicio culpando o despertador, apenas no sentido figurativo, porque na verdade dois telemóveis não me arrancaram hoje do sono como lhes tinha encomendado ao inicio da madrugada para o fazerem. Ouvi-os e pensei instintivamente que não era hora de estar disponivel para chamadas com aquele toque e lançei o braço ás escuras, á direcção do som. O meu polegar conhece bem a tecla vermelha, mesmo cego vai lá. Passados dois minutos outro "pi pi piiiiii". Encontrei-o hoje de manhã no frigorifico. Devo tê-lo metido lá sem perceber e dormi. Aquele sono sentinela, que procura ouvir qualquer ruído perturbador apenas para ter motivo de se revoltar sei lá com o quê. Um motor a arrancar desperta-me...lembra-me que estou no meu camião. Deixara-me dormir. Seleccionei um toque ao despertador de telemóvel ontem ás noite. Pensei que não haveria nada como acordar com aquela música e fiei-me na Virgem e desisti. Já não estava no mundo dos acordados...adormeci com a musica de tão bem que me fez acordar com ela.

   Levantei a cabeça, acendi a luz e olhei para o relógio de bordo. Acontecia ás 05:15 as minhas 04:00. Estava atrasado 01:15 minutos em relação ao mundo, ao meu mundo. Vesti-me tranquilamente a ouvir Madredeus. Aprontei-me...sai. Estava na vida e estava no mundo, atrasado mas estava. Percorro quase ás escuras as passagens entre camiões de homens sós que se ausentam por horas do mundo, entrei no bar e disse bom dia. Em Português porque acredito que a boa educação, seja em que lingua fôr, se faz pelo menos notar. Recebi em Castelhano três pares de "buenos dias", enquanto me dirigia aos lavabos. Voltei ao bar...bem guardado por sinal. Conto sempre com uma parelha de Guardias Civis a tomar o café de fim de turno. E lá estava um par de fardas verdes. Disse bom dia e fiquei ali, ao lado deles a beber café. Solto o telemóvel, escolho uma cançao de Quinta do Bill e ouço-a baixinho, canto-o baixinho e bebo o meu sumo e tomo o meu café a saber que o meu dia será bom. Pago, não refilo, desejo de novo um "bom dia a todos" e saio, a ouvir Jorge Palma, num tema chamado Bom Dia que simplesmente me leva do chão e me levita conscientemente para um dia que descubro aí, aguardava brutal. Pelo regresso escuro aos minimos da "Xica", penso que desde que o Cristiano Ronaldo veio para Espanha, o Espanhois começaram a consumir mais lingua Portuguesa.
Esqueci-me do Castelhano de "la vindimia" do famigerado Carlos Queiroz aquando treinador lá da equipa grande do Burgo. Sorrio e dou ao arranque. Vamos Xica...vamos colar ao mundo, leva-me, leva-me contigo no asfalto aos locais onde queremos chegar. Objectivo "Trabalhus libertus" antes das 12:00 começa a ser possivel. Gasóleo para a Xica, café para mim...já oiço a Antena1 e fiquei admirado de não ter percebido durante toda a manhã o nome do lider da oposição. Nem sei quem é sinceramente, mas era bom para infriltar nas trincheiras inimigas, possuidor nato do talento de passar totalmente como cara familiar dos "encurralados". Olho a Xica, ainda me pergunto como é que ela, tão Princesa, ainda me atura as pancas. Se calhar ela gosta deste espirito, de ter um inquilino que a deixa de 4 piscas num cruzamento e sai disparado em direcção aos correios colocar uma carta nos correios Franceses. Como quem rouba, saio a correr e nem quero ouvir as buzinas...dai a 1 min estou de volta e um sorriso e um pedido de desculpas com o meu Francês "de Lá Vindime". E vamos a rir durante uns instantes. Salto para ela, voltámos ás músicas do Quinta do Bill e do Palma, piscamos o olho e vamos embora. Vamos parar na fronteira para a pausa. Quarenta e cinco minutos, mantive-me tranquilo. Contemplei o céu azul que me cobria, o sol...o Sol em céu aberto. Já não via isto desde alguns dos dias de Verão, e aguardei.

   Passamos o arame, a alegria está de volta. Paragem na BP para comprar o maço Ventil do costume. Sei que me faz mal, mas diz que morrer cheio de saúde não faz nada bem. Começo a descer e o céu cobre-se.

   -Fodasse- pensei, se calhar até disse mesmo...não sei. Mas sei que foi essa a expressão. Espanha parece ter as contas com o clima saldadas, e nós não. Como se os raianos de Salamanca varressem as nuvens para o nosso quintal. Nem ao S.Pedro se paga. Esta "coisa" está mesmo mal. Haja travões, a A25 é a descer todos os Santos empurram, se calhar "pegados" a ver qual me chama. E empurram...descemos sinuosamente a Guarda. Velocidade conferida, dentro do limite, piso seco, vamos Xica, esta estrada é tua...cheira-a, sente-a no teu piso, vamos, falta pouco. Faltam 5 minutos para o meio-dia. a Xica está lavadinha, parece um pedaço de seda branca a corar ao sol. Duas nuvens afastavam-se a deixar passar-lhe um pouco de sol. Estamos actualizados com o mundo. Xica até logo...vou ali no espada veloz porque agora não há despertador que me adormeça.

   Talvez me sinta mesmo o mais feliz vagabundo do mundo. Mesmo que o as nuvens cubram o infinito, não quero saber, meto óculos de sol porque sim, talvez fosse melhor tira-los, mas a teimosia em querer um dia de sol não se tinha acabado na descida da Guarda. Não chove, e se não chove está bom tempo. Pus gel no cabelo, não sei porquê mas acho que me omite ali dois cabelitos brancos... O Asta Veloz já não consome cds há muito. Desde que comecei a ter de ir de paragem em paragem ver os contactos da caixa de cds, começei a olhar aquela caixa como algo que estorvava. Um dia arranquei-a á chapada e levei-a para casa a ver se ao menos dava em torradeira, para ler umas torradas...Garanto-vos que se as torradas saissem tão quentinhas como saíam os cds , não seria tão má ideia assim. Rádio...ouço o que o arame que faz de antena me dá. Já agora um aparte para quem conhece o trajecto...faço a estrada de casa quase até ao alto de Montemuro a ouvir as ranchadas e telefonemas dos ouvintes que contam os nomes das suas ovelhas. Aquilo nem me atrai nem me distrai, apenas me passa de lado para lado enquanto penso outros coisas. Sigo para a minha tarde livre. Arranjo onde amortalhar o meu tabaco, encontro em que o diluir, fumo, óculos, cançao do Bandido do Vitorino e cabelo cativo do gel. Acendo luzes, a tarde escura mantem-se, mas o meu dia de sol continua a entrar-me pelos óculos e pelo corpo. "Trabalhus Libertus" tão bem sucedido...

   O Sol...e sol acontece mesmo em dias em que não existe sol em Portugal. O Governo não paga sol ao S.Pedro, também não me deve compensar as tardes tristes que passo, por isso, deixa-me aproveitar os óculos de sol, mesmo que chova. Quero que se foda a gripe...desde que o Ébola não se aloje aqui.

   Hoje sou realmente um vagabundo educado, um vadio socialmente educado, mas feliz. Sou o Dó que o Si sustenido quer ser, sou o canto livre de uma estátua muda, sou o suspiro de liberdade, sou algo que não sei, mas sei que sou e sei que vou para onde o sol que encontro me brilha.

   Que se fodam as nuvens...quando tem de haver Sol na vida de um Homem, ele tem de ter direito a ele, mesmo que seja atravês de uns óculos escuros em dia escuro mas de ideias bem claras. O dia não acabou, não tem de acabar...fica na vossa tela dos olhos aquilo que terá sido, como eu agora confesso, ás 17:30 que não sei o que vai ser...Não sei. O Sol dirá. E Eu farei. Sei que o fim do dia acabará no despertador de novo, por isso, carrego em mim o despertador...eu vou definir o fim do dia. E o Sol também.

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Tons de Outono...



   Sr fulano de tal...

   Chegam os dias frios de Outono. Os que arrefecem o exterior e os factores que me fazem querer arrefecer um interior já sem qualquer resistência a aguentar, a suportar as quebras repentinas de um estado de ânimo que baila com o vento que vai arrastando folhas. Chegam os dias cinzentos no seu interior, coloridos a cor de Outono no seu exterior. E eu não insisto, eu desisto. Tocam buzinas em tons de morte...caiem as folhas em tons de suicidio.

   Haja a dignidade de sairmos de palco assim que termina o papel de figurante que somos.


  Tristemente ao som de...
   

sábado, 4 de outubro de 2014

Incêndio, chuva e água na sarjeta




   Sr Fulano de tal...

   Fogo. Incêndio em mim, chamas, mas não ouço... Fogo, fumo que se dilui no que somos, fumo que me escorrega dedos acima e me vai dar ás labaredas que se soltam de mim. Chamas, chamo, brasa, carvão...ardo, incêndio, fogo posto. Eco, explosão, palavras de fogo, palavras flecha, cirúrgicas missivas, queima, não penso, executo, palavras, ocorrerem-me as palavras que me rasgam a pele e brotam, negras e frias como rio de gelo que nasce de algo que se acabara de formar. Incêndio, control, descalço no rescaldo, queima-me o chão que piso, perdi os trilhos desta floresta, chamas...não sinto. 
   Cinza, negra densidão, recantos queimados em terra pisada e rasgada e espalhada. Fumo, falta visão, espreito, não vejo o amanhã, nem o 5 minutos adiante, estico braços, árvores...onde estão as árvores? agarro-me a cinzas de outros incêndios. Chamo, fumego...incêndio, arde, queima, rasga, flechas, estupidez, burrice, combustao: eu. Frio, negro, vazio, escombro.
   Chuva...tempo, Vento, água...acalma-me o nucleo. Lava, escorre lava no meu corpo, sem rios, sem veias sem nada...apenas um varrer de fogo, uma exéquia fria vergada ao poder da água da chuva. Tempo, dias , palavras criança, abraço, rebelde, com medo...chuva. Vejo-me na chuva...vejo pedaços arrastados, lanco-lhes a mão mas eles, fraquinhos, não me agarram, não ficam no hoje. Não os consegui agarrar...eram pedaços queimados do passado e eu tento salva-los mas eles não tem força. Revejo-me na chuva, fio de água que levemente leva tudo, vejo-me ir tambem, consigo agarrar alguns pedaços de mim desse resgato de água de lavagem, água de passagem... Remorso, tremor arrependido, muralhas ao alto, fecho, silêncio, pólvora e palhetes, fecha, deixa ficar, junta lenha, acrescente papel, pólvora...junte água fria. Fogo nulo. Frio, água, chuva...valeta.
    Corro, sobressalto em mim,  acordo. Acordo sem ver se tenho os olhos abertos.  Os dedos não fumegam, os pés não ardem, o chão ambulante que piso é o mesmo. Senti...sem ti c.huva, não estou molhado...água, golo de água. Luz, uma pequena luz para que veja e confirme que estão ali os pedaços inconsumíveis de passado a migrar. Luz ténue...sinto os meus olhos abertos e adormeço-os. Deixo-me render á cama, pensar que somos incêndio, sou incêndio e masmorra, abençoado com a calma de um trovão e tempestade a cada explosão. E se fosse assim? lá  E imagino um pequeno fio de água que passa, lento e sereno, ausente do hoje. Vejo pedaços de passados seguir nesse curso de água de cinza lavada, cantos de paginas felizes que deslizam calmamente rumo á sarjeta. Não lhes estico o braço nem a mão, não há em mim um Duque da Ribeira que se atire a essas águas em curso final...elas não pedem perdão, vão calmas e resignam-se de ir para um mar tão sossegado onde desaguam as águas calmas que sou depois das fases de revolta. É lenta a marcha do meu corpo a acompanhar esse pequeno rêgo de água que escorre vagabundo para a sarjeta. Não os ignoro...vejo-os ir de vez mas é um funeral peculiar, o corpo presente sou eu. Acompanho até que os meus olhos parem sobre a grade da sarjeta, o crivo final, portas de um inferno escuro. Vejo-as cair uma a uma, em paz e felizes por as ver ir. E Aguardo...fica sempre algo maior preso na grade, algo maior que resiste á passagem de coisas mais pequenas em enxurrada mais impaciente, algo que se recusa a largar-me a ponta do casaco do dia de agora. 
   Parou...a água parou. o fogo que me ardia extinguiu-se. A chuva que condensava apagou-me, lavou-me, levou tudo...menos a coisa da águia da sarjeta. Luz...não derreteu. Incêndio, chuva, água de sarjeta...tudo suportou. Coisa, relíquia que se guarda em cofre migratório que recolho do mar que sou...em chamas.