sábado, 26 de maio de 2012

Oh "catastrófe"

Sr fulano de tal...

   O calor aperta e a viagem inicia-se sem grandes perdas de tempo. Voltei a deixar voar o meu corpo numa deriva controlada a metro e meio do asfalto. Sinto-lhe o calor e a cor negra que o absorve. As vezes que subi a A25 ou as que passei o arame farpado das nossas fronteiras aínda não bastaram para que não saia sempre triste e em tons de despedida de um sol, de um país, de amigos e familia...é como tentar meter a vida numa mala e arrancar por dias consecutivos e ter a noção que ficam para trás. Assim que se passa a fronteira, seja ela qual fôr, o dia deixa de ser mais um dia e passa a ser um dia a menos para o regresso. É esta a única bagagem imaterial que trazemos e onde transportamos as pessoas e coisas que sabemos fazer-nos falta, sejam as circuntâncias que forem.

   O dia começa a pousar...olho pelo espelho retrovisor e vejo o sol poente como que suspenso sobre a linha do horizonte, o céu incendeia-se e daí a pouco as luzes acendem...perde-se o sinal rádio da Antena 1, a rede de telemóvel já é sujeita a roaming e dá-se o "clique"...Fica Camões e entra Cervantes. Sintonizo a Rádio Nacional Espanhola e tento abstraír-me do sossego que já impera aí no meu interior. Será assim até Frankfurt, destino desta viagem que ainda realizo...com a tal bagagem imaterial que carrego em mim, mais enriquecida pela dupla alegria de encontrar duas pessoas que me leiem e que me reconheceram mal meti a cara de fora da camioneta depois de uma noite bem dormida por aqui, por ler o blog, e por ter reencontrado dois amigos que fiz ( os mesmos, familia Antunes) na última area de serviço da Alemanha quando já regressava a Portugal. Um grande e feliz momento, diluído num café tranquilamente tomado e devidamente documentado por fotos. Abro o porta-moedas com um gosto especial, abro a bagagem e arranjo um cantinho onde meter mais dois amigos que de forma curiosa conheci.

   O dia fechou-se assim na fronteira de Aachen numa sessão fotográfica hilariante talvez aos olhos de quem nos visse programar a máquina fotográfica, clicar, pousar e ir a correr para o cenário e chegar á 5ª tentativa e nada...nada de jeito. Mas de todas as fotografias que se tiraram para perpetuar o momento, sobraram algumas que servem de esboço ao desenho do quão bom foi encontrar pessoas que estão de bem com a vida. Verbo sorrir em riste.

   A manhã nasceu cedo...a luz da aurora invadiu-me a cama ás 5 da manhã. Arrumei a cama, abri cortinas e mostrei de novo a cabine ao mundo. Um duche, um café e munido de vinheta para circular no Benelux. Volto a ver o sol em crescendo pelo retrovisor enquanto desapareço de Aachen Bélgica dentro. O dia inspira. Paragem para abastecer no Luxemburgo e tempo para um café com um amigo de longa data, meu conterrâneo.
    Mais uma pausa feliz. Anoiteci em Montargis, França, esticando ao máximo o horário para conseguir sair de França antes das 22 horas de hoje.

    - É hora de acordar, são três horas e quinze minutos- diz-me uma voz feminina programada no despertador do telemóvel. Primeiro round: Eu 1 - Despertador 0. Quando me levantar procuro-o debaixo de um dos pedais... Desperta o outro telemóvel...é mais irritante e como não lhe chego deitado, ergo-me e pronto...empate e eu rendo-me á vertical. Avanço de madrugada para evitar os turistas  franceses que gostam de invadir a estrada rumo a uma area de serviço fazer um piquenique...Com o dia chega também a parte mais larga da estrada, duas faixas desde Vierzon até Limoges, aumenta o tráfego e o calor. Umas obras e o cheirinho a verão nas filas que criam. Tempo para observar as pernas despidas que descuidadas se mostram a quem as vê sem quer de cima. Um cheirinho a seca e tempo perdido em filas desorganizadas originadas pelas deslocações das pessoas que viram chegar o dia de ir de férias, merecidas ou não, ei-los que estorvam e que se desorganizam.

- Catastrófe- digo eu em tom Ûcra-Lusitano. Não me vou safar assim. Mas quis a viagem continuar a ser agradável e assim consegui hoje, estar um pouco exposto ao frio nocturno de Alsásua, muito perto já da zona dos Pirinéus. Daqui a poucas horas volto á estrada com destino a Viseu e a parte material da bagagem que deixei, mas quebro aqui desde já a regra de só falar no final da viagem.
   O cromatismo dos dias e das viagens insiste em coisas muitas vezes repetidas mas desta vez foi tão diferente: Fiz dois amigos e voltei a trazer a viola, ainda que em silêncio, ela veio comigo. Vem sempre...ás vezes sem cordas. Fiz dois amigos.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

O lado de lá da outra vida



   Srs Fulano, Sicrano e Beltrano de Tal...

   Por uns tempos deixei de escrever, pelo menos aqui neste blog onde vou partilhando a vida que reparto em dose industrial com a Xica. Há outra parte da vida que parece adormecida quando passo a fronteira mas a cada momento desperta e aí lembro-me que há outra vida consagrada na minha e que não é de certeza dedicada á minha profissão. A verdade é que ultimamente as viagens eram iguais, não os destinos mas os pensamentos eram os mesmos, e perdi a vontade de vir durante uns dias. Sentia que o meu pai se esgotava rapidamente e assim que foi internado, decidi que íria saber se seria possível tirar uns dias de férias para poder estar no hospital todos os dias, de manhã e de tarde, junto dele. Fui o último de quem se despediu...libertou-se a 25 de Abril. Doze dias num hospital que pareceram anos. Não porque desejava quie o tempo passasse rápido, não, não é isso, pareceram anos no conteúdo das conversas que pude ter com um homem com o qual eu não vivi mas convivi. Pude dizer-lhe tudo o que sentia, pude estar ali calado á espera que daquele corpo já leve e cansado viessem palavras. Pude sentir a vela na mão...pude ver aquela chama que era forte ir perdendo no amarelo e ganhando mais o tom de pavio queimado, pude sentir a cada dia a temperatura a descer e as forças a despedirem-se. O meu pai partiu...é isso mesmo. Um dia chegou e um dia partiu e tal como todos também eu vou adiando a partida final, mas até lá vou chegando e partindo, vezes sem conta aqui e acolá, mas nunca foi a última vez e é isso que me empurra: contar a que não foi a última partida.
   Durante dias olhei para fora desta janela. A perspectiva da foto era a mesma que a que os olhos do meu pai viam quando já desconfortável pela posição acamada do corpo, tinha na serra que se vê ao fundo a sua referência. Passei ali horas em pé, olhando para a rua e vendo a primavera instalar-se...ficava ali á espera que o meu pai acordasse e me visse. Piscava-lhe o olho e ele voltava a adormecer. O meu pai dizia que os hospitais sao sitios onde as pessoas estão tristes e morrem de noite. O meu pai não dormia de noite com medo de morrer de noite. Aguardava achegada de um dos dois filhos e então adormecia aos poucos...acordava, falava, cansava-se e adormecia. Esta janela de onde espreitava e narrava ao meu pai tudo o que via. Partilho-a aqui connvosco, uma vidraça diferente no lugar de para-brisas, mas uma janela com vistas para a vida e era por isso que o meu pai a queria aberta para que olhassemos todos por ela. Acho que só hoje descobri isso...
   Voltei ás viagens e a dar a minha pele ao sol que já vai queimando. Voltei a deliciar-me na estrada e a sair encantado de alguns cenários que em viagem posso contemplar de um local previlegiado atrás do para-brisas. Não é uma vidraça como a de cima, mas é concerteza também uma janela para a vida que também deixo para trás cada vez que parto e que agarro cada vez que chego. Os dias virão melhores e eu cá estarei para me vestir da cor que o sol tem para dar.