sábado, 21 de novembro de 2009

Desencontro


sr fulano de tal...
Esta viagem mais recente, em que saí em dia de S.Martinho, não me proporcionou vinho novo e o doce assado das castanhas...mas a visão de uma situação castanha, quase escura da coisa. Que os dias dias frios e cinzentos já se haviam instalado já sabia...mas que a minha maior liberdade de ser eu próprio e não o que outros querem que eu seja me iriam colocar numa situação negra sob o ponto de vista emocional, não. E tudo se aliou.
Entrei a medo pelo sul de França, passei a fronteira de Irún pela madrugada...ali vou eu. Estradas que estranhámos desertas que estão, na portagem nem uma farda a olhar para mim a obrigar-me a "desprazar" o gesto de que se nada fosse. Na verdade o pánico liberta-se um pouco em mim em cada portagem, em cada entrada ou saida ou mesmo nas portagens intermédias em que a França é rica. Não que esteja de alguma forma ilegal, mas é uma sorte...um descuido num horário e lá estamos nós á perna de uma multa de milhares de euros. E a informação é contida num registo que tem que nos acompanhar por 28 dias, ou seja, estamos lixados. Deixem-me imaginar o seguinte:
Um criminoso ou alguem que viole uma lei ou ainda alguém que mesmo, ainda que por descuido, esteja em situação de não concordância com a lei andaria com a prova do crime no bolso durante 28 dias, ou seja, seria pedir muito ao Vara que andasse com a tal mala dos 10 mil euros com ele durante 28 dias, seria pedir aos assaltantes que andassem com as facas ensanguentadas e as pistolas no bolso durante 28 dias, seria pedir a cada um de vós que explicasse os vossos 28 dias de trabalho...
Pronto, confesso, eu ando com medo do dia 27 do mes passado, fiz uns minutos a menos num descanso...o cliente ía fechar e por 11 minutos pude vir de fim-de-semana porque descarreguei ali na hora exacta do fecho do cliente, senão o fim-de-semana seria em qualquer parte da Europa onde eu sentisse o meu corpo pedir que fosse ali o local de descanso e se respirasse paz.Muita paz interior. Até dia 25 deste mês não queria ser controlado pelos amigos do control...porque, se o jogador da bola Cristiano, que ganha 100 mil euros/mês joga a 1ª parte do jogo, usa o intervalo para exercitar o corpo, faz exercicios de forma que o corpo não arrefeça, e assim prescinde dos 15 minutos de descanso que a lei que rege lá a coisa deles da bola, é logo considerado um excelente profissional...já um motorista, teve 11 minutos para não estagnar a sua vida profissional, usou-os, e agora fica com a sua vida pessoal em jogo. Ou seja...ando com a prova da ilegalidade e a malta diz "ai e tal tem que ser porque os camiões e tal...o cansaço" -alto. Mais um momento aqui...não me lixem, a lei só existe porque é decidida por gajos a quem temos de escolher para lhes garantir tacho, ou seja, eu ao votar estou a contribuír pra o filho de sr Sicrano, amigo do Beltrano, ir para deputado, decidir e regular coisas sobre as quais ele não faz nenhuma ideia. Usando um palavrão ( até porque ando revoltado com uma pessoa com quem me enganei ) , não me fodam, que-se dizer...Vamos supor que eu acordei um dia em Bruxelas ás 7 da manhã. Depois dos preparativos que fazem parte do meu ritual a cada inicio de dia de trabalho arranco ás 8. Ando 4 horas e paro o tempo que me apetece pra o almoço, desde o o minimo seja 45 min. Ás 13 arranco e ás 17 encosto e faço uma nova pausa. Tenho nesse momento 8 horas de trabalho. De facto pode haver fadiga mas não muita...os camiões de longo curso já conferem um bem-estar e proporcionam muito conforto a quem os conduz.Já não são tão cansativos e maçudos. Prossigámos...por um ou outro motivo tive que mexer o camiao ás 17 e 34, ou seja, quando faltavam 11 minutos para os tais 45 min de pausa obrigatória entre periodos de condução cujo maximo de tempo pode ser de 4h30m. Mexi uns metros e no mesmo minuto parei mas ficou o registo de que nao garanti a imobilidade do camião. Ás 18 horas segui e ás 20 horas parei. Balanço do dia: Por hoje chega, 10 horinhas de condução...vou comer algo e ver um filme e dormir...daqui a 11 horas há um novo dia de trabaho. E se vos disser que posso pagar uma multa que pode ir até 2 mil euros por quando devia estar parado, cheguei atrás uns 15 metros? Pois é...passo a ilegal e incumpridor, perante a lei e os amigos do Ministério de Trabalho Francês que adoram tanto o bolso do Zé Tuga. Agora penso, entre uma duvidosa passa, se os gajos que legislam lá em cima, se alguma vez vieram de camiao de Bruxelas ao Porto ou Lisboa...pronto, também pode ser Alguidares de Cima, ou de carro? Claro que não. Claro que não. Passo até a recordar um episódio fantástico ocorrido há cerca de 1 ano atrás: Vinha eu na A10, sentido Paris - Bordeus, tinha já passado Orleans...Chovia imenso e o trânsito parava ali mesmo, entre Orleans e Tours. Um acidente grave, helicopteros pousados na auto-estrada e 30 minutos ali parados. Daí a pouco levantam os heli, os bombeiros limpam a estrada e em minutos sigo, embora que lentamento, porque apenas uma faixa estava aberta e apesar disso há sempre a curiosidade. Nesse pára-arranca vi pelo espelho um carro igual o de um dos meus melhores amigos, Avelino, e lembrei que até pudesse ser ele e de facto era. Deu tempo a descer e ir á janela do carro dar aquele abraço aos amigos que vinham de carro do Luxemburgo. Com ele vinha o Celso, que se aventurou nessa viagem fantástica sem rádio...Combinámos parar logo na area de serviço adiante, a uns 4 kms depois do acidente. O trânsito fluiu e lá paramos nessa area de serviço. Aí pude conhecer um motard Português que era nada mais nada menos que um dos motoristas do Durão Barroso. Tinha a paixão pelas duas rodas e vinha de férias na mota...Bruxelas até zona centro de Portugal. Claro que falamos imenso mas a pergunta surgiu até cedo...Se o sim surge como resposta á pergunta se alguma vez veio de carro oficial para Portugal, já o não ecoou entre risos se o Durão lá vinha...Pois é. Não vinha. E se não vem de carro desde Bruxelas até Portugal, não sabe o que é estrada e deveria ter a consciência, não só ele (o Zé Manel de Bruxelas) como todos aos quais demos tacho, de que de facto legislam com base numa merda simples: experiência própria. E agora vós pensais: "Dass, este gajo quando dá para complicar é do caraiii". Até imagino um ser humano estranho, das beiras nascida (quase de Espanha), que me chama amigo estranho e a quem eu chamo coisa esquesita... Sabem o que acontece muitas vezes? Aqui vai...Um homem levantou-se, saiu de manha para o trabalho, 17 horas, chegou a casa, enquanto toma um banho a mulher veste os filhos e fecha as malas. Está tudo pronto. Apagam-se as luzes, fecha-se o gás e a água e fecha-se a porta do lar...há uma viagem do Luxemburgo até á aldeia imediatamente a seguir ao gesto de rodar a chave da porta de casa. E lá vem ele por aí abaixo...e entra na madrugada onde os filhos adormecem no banco de trás e a mulher já é mais alguém que ali vai a garantir que o marido nao adormece ao volante...Entre as 2 e 3 da manhã eles param...encostam 3 ou 4 horas numa area e descansam ( os mais machos fazem tudo por aguentarem a directa e só pararem mesmo n aldeia de onde um dia partiram. Mas, vamos ao que fazem uma pausa para dormir um pouco...bom, param e buscam um cobertor onde se enrolam e dormem nos bancos...fecham os olhos mas o corpo mantem-se naquela posição na mesma. Acordam e seguem...Mas isto não há quem controle, ou seja, um homem trabalha a sexta-feira normalmente no armazém, chega a casa e mete-se no carro com a familia em direcção a Portugal, aproveita a noite para progredir no terreno porque de facto há menos trânsito e se o objectivo é assar Paris, então está a pensar bem...mas o pior é que o objectivo é aguentar ver nascer dia já bem perto de Portugal....os corpos cansados da posição, um homem que não dorme há mais de 30 horas...e nada. Um gajo...11 min a menos de descanso sujeita-se a mamar a bucha.
Ninguém na fronteira, a noite ainda era bem escura e a xaleca já arrastava os seus cavalos a galope na terra dos milagres da bola (tenho a selecçao Francesa atravessada há muito...). Sigo para a Zona de Toullouse...Espero naquela que considero a mais bela área de serviço de França ( Aire des Pyrenées-Le tour dans les Pyrenées) o nascer do dia. Trago o café cá para fora e o prazer de sentir o café bem quente numa manhã fria redobra-se. O sol nasce e vai iluminando o enorme monumento monumento erguido em honra dos ciclistas que venceram gloriosamente o Toumalet, pico que se ergue nos Pirinéus...è realmente belo e como o é, não tenho palavras para o descrever mas imaginem...eu, de máquina fotográfica em punho a querer capturar o que os meus olhos captavam e nada (não tenho cabo de passar fotos para o pc por isso gamei esta foto do tal monumento aos ciclismo)...de cigarro e café quente de sentinela a aguardar o sol render a noite. O Dia termina em Dijon...sigo em direcção a Orleans e depois Paris. Sexta- Feira, 48h antes estava em casa, em Penafiel e agora, 3 clientes depois estou em Paris e quero descarregar e carregar, seja para onde fôr. Não me perdoaria passar o fim-de-semana vazio e parado á espera. Assim fiz, fiquei vazio e a carga que me arranjaram foi para a Bélgica. Ainda tinha cerca de 3 horas para andar nesse dia, caso entendesse fazê-lo e assim o fiz. Aproveitei o pouco trânsito na A13 para me esticar e acreditar que iria passar bem Paris, ás 17 horas locais...Aí estou eu...engolido no trânsito de Paris, a noite está já negra e o pára-arranca surge. Fotografo ao longe a Torre Eiffel, a uns escassos metros do Sena. O periférico era de facto o que menos convinha para a viagem, há filas e paragens por todo lado, mas para mim, até foi relaxante, pertencer por momentos aquele quadro de uma Paris colorida por reclames enormes, luzes por todo o lado. As pessoas agitadas aproveitam para do carro, enquanto aguardam andar mais uns metros, enviar uns mails e assim adiantar trabalho. Quero partilhar com alguém o cair da noite, o coração da cidade luz a bombear trânsito e eu a filmar com o telemovel. Envio o video...enganei-me na pessoa. Os enganos acontecem. Olho pelo espelho, ao longe, no meio de centenas de carros e camiões, umas luzes azuis dos "amigos" sinalizavam marcha de urgência. Entro num tunel, vou encostando á direita de forma a criar um corredor onde os veículos que viajam de forma urgente possam passar...e de que é que se tratava? Ora bom, era as motas da policia, sirenes e pirilampos activos a abrir caminho para o autocarro que transporta a selecção Francesa possa passar até ao aeroporto Charles de Gaulle. Nesse momento a rádio Alfa de Paris, noticiava que a selecção Francesa estava a caminho do aeroporto para irem jogar á Irlanda. O povo apitava e agitavam-se luzes e animava-se a malta da bola...o certo é que o caminho para a selecção estava aberto...mas não só no trânsito, como depois na 2ª mão viemos a comprovar. O trânsito evolui lentamente, quero sair para a A1 em direcçao a Lille e a coisa não anda...Estava preocupado com a hora...faltavam 20 minutos para ter de parar e ali estava eu na saída. Depois, andou-se bem, e pude disfrutar de algo que raramente acontece mas que devia acontecer mais vezes...imaginem a auto-estrada com outra a passar por cima, mas em vez de carros, sejam grandes aviões que "chovem" a cada hora naquele aeroporto...extraordinário, assustador mas que agita a adrenalina...ai se agita. Parei logo depois...adormeci a ouvir a rádio Alfa de Paris, a rádio em Português.
No sabado acordo...dormi 15 horas. Apronto-me e sigo para a Belgica...Páro na última área de serviço de França, compro a vinheta para 3 dias e avanço então para Namur. Pelo caminho encontro dois colegas Portugueses e junto-me á marcha deles e á conversa, já que todos tinhamos rádio CB. A viagem torna-se mais leve, um deles pica o outro e falam de reforma. Eles seguem, eu viro aqui á direita...avanço em direcção a Andenne, vou reconhecer o local onde segunda de manhã iria descarregar. Encontro o cliente...estava aberto e ainda mesmo no sabado descarreguei. Restava-me agora a melhor das coisas...escolher onde ficar mais de 24 horas parado. Faltava entregar a carga a um cliente em Bruxelas portanto, teria muitos locais onde me apetecesse ficar. Sigo em direcção a Bruxelas. Pelo caminho um café e um duche numa área de serviço. Envio uma mensagem...A "xaleca", leve que estava, agitava-se bem entre os carros que iam aparecendo na 42. Sigo até ao cliente, reconheço o local, está fechado. Olho em volta, tenho um centro comercial, estação de serviço, cinema e uma cidade ali ao pé. Sigo para a área de serviço...desligo o motor e deixo a "caminete" dormir. A mensagem fez efeito, os amigos são para as ocasiões e como tal lá foi uma amiga buscar-me para um café e um reconhecimento a pé nas iluminadas ruas da zona. Cai a noite e a selecção joga. Na rádio não encontrava resposta ao que queria ouvir daí que procurasse em AM as emissões da Rádio Espanhola (aquela que apanhamos sempre quando mexemos no rádio a pilhas do avô). A França vencia por 2 a 1 a Irlanda. Sobre o Portugal-Bósnia nada. Pensava na França...no dia anterior os jogadores a passarem mesmo ao lado, a olharem para dentro da Xaleca, e agora estavam noutro país, já com uma vitória garantida...Recebo uma msg que não seria para mim mas que informava da vitória de Portugal por 1 a 0. Saio sozinho e entro num barzito e deixo-me diluir na musica. Adormeço tarde.
Vem o Domingo...uns filmes resolvem as horas vazias enquanto não saio para mais um café. E algo muda, porque algo nos escapa porque algo nos faz falta e logo tentamos colmatar isso. Passou o Domingo...trago ainda o doce sabor de um café.
Descarrego cedo, sigo para o lacal de carga onde iniciarei a viagem de retorno. Arranco tarde de Bruxelas, eram umas 5 da tarde. Queria passar Paris com o tempo que legalmente podia andar. Seria possivel? - Sim. Meti-me á estrada. Tudo parecia perfeito e a correr de feição. Passaria Paris pela noite, sem trânsito nem preciso de travão. Chego a Paris, saio para a A3, tenho tempo para chegar á N20. Sigo a 90 kms hora, na Rádio Alfa passavam uns fados. Entro na 86...obras. Uma enorme fila...o tempo a desaparecer e eu a ver que teria de ficar numa valeta 9 horas. Nem pensar. Avanço decidido a sair na 1ª saída que visse. Era para uma zona industrial...encostei numa avenida e ali dormi. França estava eufórica...a vitória da Irlanda motivava a coisa. A rádio Alfa emitia um especial selecçoes em que se debruçavam sobre França e Portugal, como é lógico. Um comentador luso anunciava que a França teria uma tarefa bem mais complicada que Portugal. Alertava que a Irlanda vinha jogar o que sabe e que o pior que lhe podia acontecer era perder. O locutor riu e lembrou que a Bósnia é qe era dificil porque isto e aquilo e tal e coisa, mas o locutor, reconheço agora, é um gajo de conhecimentos, sabe do que fala. A Irlanda só foi batida da forma escandalosa que se viu naquela mão do Thierry Henry. A Bósnia...ganhou o duelo na bancada e no lançamento do escarro, porque de resto, foi presa fácil para Portugal dentro do relvado.
Paris ja estava acordada quando 3ª feira de manhã abri as cortinas. Atirei-me de novo á estrada, em filas e obras, tudo parado e tudo a acompanhar o caracol...Tempo que se perdeu e que me levou a ficar uma outra noite em França, se bem que bem mais pertinho de Espanha. Estava tão pert de Espanha que apanhava em FM a RNE1 e ouvi o programa "tablero dos desportes" em que um jornalista Espanhol reportava a presença da selecçao Espanhola na Austria para um jogo amigável mas também o jogo de Portugal na Bósnia. Em directo da Bosnia e para a Rádio Nacional Espanhola, o enviado especial da TSF a acompanhar a selecção Portuguesa era o convidado que pelo telefone foi respondendo aos jornalistas Espanhois. Finda a entrevista a desligada a chamada, o comentário do jornalista espanhol foi o seguinte: Quem me dera. Mostrou claramente no seu comentário o seu gosto pessoal que Portugal fosse ao mundial...sinceramente gostei desta proximidade desportiva entre os Ibericos.
Descarrego em Espanha e recebo ordens de carga para Portugal.
E assim me fiz a Portugal na tarde de 5ª feira...ja de coração vazio. Hoje ja posso escrever de coração limpo...porque grande é a viagem...muitas as paragens.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Roma


Sr fulano de tal...

O oposto de bonito é feio, assim como o oposto de rico é pobre, de preto é branco, isso aprende-se antes de entrar para a escola. Se observarmos tricas entre crianças, relembramos também que o contrário do amor é o ódio. Errado? Não, não é errado, não se pode exigir que uma criança saiba algo tão terrivel e tão pobre como a verdade. Já se observarmos gente mais adulta descobriremos a resposta certa: o contrário do amor não é o ódio como pensámos á partida, é a indiferença. Não é Roma.
O que será preferível entre estas duas situações? Que uma pessoa da qual gostámos passasse a odiar-nos, ou que lhe fossemos totalmente indiferentes? Que não dormisse só para imaginar mil e uma maneiras de nos fazer sentir mal ou que dormisse, como que se um anjo fosse, a noite inteira, esquecido por completo da nossa existência? O ódio é também uma forma de se estar com alguém e desengane-se quem pensar o contrário. Já a indiferença não aceita declarações ou reclamações: o nosso nome simplesmente deixa de contar na lista negra ou não. Ali já não existimos, a nossa existência já era.
Para odiar alguém, precisámos de reconhecer que esse alguém existe e que nos provoca sensações, por piores que sejam. Para odiar alguém, precisamos de um coração, ainda que frio, e raciocínio, ainda que doente. Para odiar alguém gastámos energia, neurônios e tempo. Aborrecemo-nos e nem lembramos que odiar cria-nos cabelos brancos, rugas no rosto e angústia no peito. Para odiar, necessitamos do objecto do ódio, necessitamos dele nem que seja para dedicar-lhe o nosso rancor,a nossa ira, a nossa pouca sabedoria para entendê-lo e pouco humor para aturá-lo. O ódio, se tivesse uma cor, seria vermelho, tal e qual a cor do amor.
Já para sermos indiferentes a alguém, precisamos do quê? De nada. A pessoa em questão pode saltar de para-quedas, assistir aula toda nua ou em cuecas amarelas, ganhar um óscar ou uma condenação a prisão perpétua, a gente nem quer saber "que se lixe". Não julgámos os seus actos, não queremos saber seus modos e atitudes, não testemunhámos a sua existência. Ela não nos exige o olhar, a palavra, o coração, o cérebro: o nosso corpo ignora a sua presença, e muito menos sentimos a sua ausência. Não temos o número do telefone das pessoas para quem não ligámos. A indiferença, se tivesse uma cor, seria cor da água, cor do ar, cor do nada.
Uma criança nunca experimentou essa sensação: ela ou é muito amada ou então repreendida pelas asneiras que faz. Uma criança está sempre num dos extremos, adorada ou maltatratada, mas nunca é ignorada. Só muito mais tarde, quando precisar de uma atenção que não seja materna ou paterna, é que descobrirá que o amor e o ódio habitam o mesmo universo, enquanto que a indiferença é um exílio no deserto

Dias de escuro


Sr fulano de tal...

Descalço...sinto-me descalço. Sem sandalita enfrento por agora os dias cinzentos e frios descalço. E é impossível não estar triste, impossível não sentir uma forte estrutura ruir. Um homem perdido numa cabine...está vazia, segue vazio o homem que vos escreve.
Mas prometo não falar de amor. Só me apetece sentir,não me apetece partilhar estas coisas de que também sofro.
Tenho mudado os meus próprios horários. Assisto agora ao nascer do dia já depois de testemunhar o fim da noite, do escuro e das estrelas. Os dias de Inverno alteram as minhas rotinas instaladas. Por norma acordo ás 3 ou 4, no exterior entre o frio granitico e o côro de aquecimentos de parque dos camiões ainda dança o vento com tudo que lhe atravessa o caminho e paro ás 14 ou 15, ainda a tempo de arranjar estacionamento com relativa facilidade e de ter luz natural para cozinhar. Prefiro assim...detesto cozinhar ás escuras. Sempre tive a impressão que o frio se aliou á noite. Não há luz, há frio. Andar assim cedo permite-me fazer 3 horas ou mais de conduçao antes de dormir quando a luz do sol começa a vencer a escuridão deixada pelo rasto da noite. Aí paro, preferencialmente de forma a ver o sol nascer e se os olhos não aguentarem ver esse momento que tanto mexe comigo, então durmo uns minutos. Nunca lembro um único dia em que tivesse amanhecido mal disposto com alguém do mundo. Agora entre uma passa, pareço recordar o momento em senti que o momento em que o sol se ergue é tão importante em mim. Em Angola, em Huambo, no acampamento das nossas tropas ao serviço da Onu, havia um posto de segurança (guarita para quem foi á tropa e também para muitos que não foram) que estava voltado para o aeroporto da grande cidade do planalto central. Um dia assisti dali ao nascer do dia...não lembro de nada mais a não ser a paz, o silêncio sossegado que me acompanhou nesse momento. Ausentei-me de mim, deixando ali um corpo a segurar um arma...eu estava ali mas não estava, amanhecia ali com o dia. Desde aí procuro assistir ao romper de cada dia.
Trabalhar mais cedo tambem permite parar mais cedo, claro que é com mais facilidade que encontro o lugar ideal para parar a xaleca, minha única companheira, e poder, já depois de uma refeiçao quente, assistir ao fim da luz, á invasão visual do frio. E adoro estar assim...a assistir ás rajadas de vento, ao frio cortante que dança entre a gente que caminha na rua, á chuva riscada em diagonais tocadas a vento porque no fundo, assisto sem lhe tocar porque o prazer está em assitir a este quadro de implacável frio, comodamente sentado no conforto quentinho que a xaleca me reserva. E quando há nevões até arrepio de tanta paz...é bom, estar de calções e t-shirt a ler um livro ou a fazer qualquer outra coisa enquanto do outro lado da vidraça está o Inverno, a insinuar-se e a manter a sua força da tradição. É do melhor, acreditem.
E já não assisto ao império negro que a noite impõe, já não sinto o colega que chegou e parou ali mesmo ao lado porque adormeço cedo...é a dança das horas e a dança dos dias de luz que passam depressa dando á noite o espaço que ela bem entende ter para nos dormir...para nos calar o pensamento.
.