segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Dias de escuro


Sr fulano de tal...

Descalço...sinto-me descalço. Sem sandalita enfrento por agora os dias cinzentos e frios descalço. E é impossível não estar triste, impossível não sentir uma forte estrutura ruir. Um homem perdido numa cabine...está vazia, segue vazio o homem que vos escreve.
Mas prometo não falar de amor. Só me apetece sentir,não me apetece partilhar estas coisas de que também sofro.
Tenho mudado os meus próprios horários. Assisto agora ao nascer do dia já depois de testemunhar o fim da noite, do escuro e das estrelas. Os dias de Inverno alteram as minhas rotinas instaladas. Por norma acordo ás 3 ou 4, no exterior entre o frio granitico e o côro de aquecimentos de parque dos camiões ainda dança o vento com tudo que lhe atravessa o caminho e paro ás 14 ou 15, ainda a tempo de arranjar estacionamento com relativa facilidade e de ter luz natural para cozinhar. Prefiro assim...detesto cozinhar ás escuras. Sempre tive a impressão que o frio se aliou á noite. Não há luz, há frio. Andar assim cedo permite-me fazer 3 horas ou mais de conduçao antes de dormir quando a luz do sol começa a vencer a escuridão deixada pelo rasto da noite. Aí paro, preferencialmente de forma a ver o sol nascer e se os olhos não aguentarem ver esse momento que tanto mexe comigo, então durmo uns minutos. Nunca lembro um único dia em que tivesse amanhecido mal disposto com alguém do mundo. Agora entre uma passa, pareço recordar o momento em senti que o momento em que o sol se ergue é tão importante em mim. Em Angola, em Huambo, no acampamento das nossas tropas ao serviço da Onu, havia um posto de segurança (guarita para quem foi á tropa e também para muitos que não foram) que estava voltado para o aeroporto da grande cidade do planalto central. Um dia assisti dali ao nascer do dia...não lembro de nada mais a não ser a paz, o silêncio sossegado que me acompanhou nesse momento. Ausentei-me de mim, deixando ali um corpo a segurar um arma...eu estava ali mas não estava, amanhecia ali com o dia. Desde aí procuro assistir ao romper de cada dia.
Trabalhar mais cedo tambem permite parar mais cedo, claro que é com mais facilidade que encontro o lugar ideal para parar a xaleca, minha única companheira, e poder, já depois de uma refeiçao quente, assistir ao fim da luz, á invasão visual do frio. E adoro estar assim...a assistir ás rajadas de vento, ao frio cortante que dança entre a gente que caminha na rua, á chuva riscada em diagonais tocadas a vento porque no fundo, assisto sem lhe tocar porque o prazer está em assitir a este quadro de implacável frio, comodamente sentado no conforto quentinho que a xaleca me reserva. E quando há nevões até arrepio de tanta paz...é bom, estar de calções e t-shirt a ler um livro ou a fazer qualquer outra coisa enquanto do outro lado da vidraça está o Inverno, a insinuar-se e a manter a sua força da tradição. É do melhor, acreditem.
E já não assisto ao império negro que a noite impõe, já não sinto o colega que chegou e parou ali mesmo ao lado porque adormeço cedo...é a dança das horas e a dança dos dias de luz que passam depressa dando á noite o espaço que ela bem entende ter para nos dormir...para nos calar o pensamento.
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1 comentário:

Joni disse...

É das melhores sensações que se pode ter na estrada: calções e uma camisola de alças no quente da cabine a apreciar o frio cortante e as rajadas de chuva obliqua que caem lá fora.
Adorei este texto, como me revejo nele em muitos aspectos.
Aquele abraço companheiro da roda