sábado, 15 de novembro de 2014

Aromas ao entardecer (na estrada)




   Sr Fulano de tal...


   Rolámos já sobre folhas douradas que jazem esmagadas no asfalto da estrada. Atravessámos já os mais coloridos cenários que só os anos passados permitem ver...e cada Outono é sempre novo, cada Outono é sempre virgem...cada Outono é mais um aquecimento para o Inverno, como que exercício gradual de habituação ao que há-de vir. Os dias demoram menos a passar, tornam-se longas as noites. Gradualmente despedimo-nos do sol, já por isso deixei os meus óculos de sol em casa, até que o sol volte, e uso uns que são os eternos suplentes. Dois vidros negros numa armação tipo Stalone Cobra. São cinzentos os dias, um raio de sol é uma dádiva, a chuva avança, a chuva incomoda, perturba...mas há algo. Há algo no ar quando cai a chuva. Algo tão...como se fossemos sua pertença.
   Outono, dias confusos...mudança de horários. Acorda-se de madrugada para ás 3 ou 4 da tarde ter a esperança de encontrar lugar onde parquear o camião em segurança em lugar devido. A chuva que cai chateia-me. Não tenho espaço no reboque, reboque vai selado. Chove copiosamente e eu tenho que comer. Agachado, debaixo do reboque desenhei na panela o melhor arroz jamais servido na trincheira. Deixei a loiça por lavar, arrumei e fui, sob chuva tomar café.
   Gosto de tomar o café sossegado...gosto de ir á área de serviço e tirar um café portátil naquelas máquinas subtilmente colocadas em lugar estratégico para nos encher o olhar. Gosto de dar uma volta á loja, ir bebendo cada golo do café sempre que algum preço me surpreenda. Sem dar por isso desaparece-me o café. Passeio um copo vazio não. Vou saindo...passo a zona dos cafés. Avanço para a porta, abraço-me no casaco como quem espera frio...e lá vem o cheiro. Aquele cheiro que nos faz sentir pertença de algo tão maior que os homens...
   Sou apenas mais um vulto escuro que atravessa o parque. O céu não ilumina, não há além...no nevoeiro não deixa ver o ali e o acolá que costumam estar ali a metros. O quente sabor do café esvai-se no frio que respiramos. Não sinto oxigénio...sinto frio apenas. Entro na Xica...aninho-me no lugar do morto, acendo um cigarro, deixo-me vencer pelo cansaço. Já não sou eu que ali está...recomeça a chuva e aquele cheiro que me diz de quem sou pertença.
   A chuva em terra aquecida, aquele cheiro da terra arrefecida e que ferve...que se solta e se espalha no ar. Vale a pena o momento. É Outono...não ouvimos. O Outono não precisa de nós com os 5 sentidos. Não levo audição para o Outono. É mais de aromas ao entardecer, aromas em céu cinzento como estufa que fomenta o odor. O frio que respiramos vai tão fundo que cada suspiro tem o tamanho de constipação possível. Mas com o ar frio segue o cheiro da terra evaporada, e desce, vai com o frio vencendo-o já mais lá dentro, onde o frio percebe que não sou feito de frio mas apenas pertença da terra. Nem as últimas passas do cigarro me despertam do que estou a sentir. Tenho um papelão a proteger a entrada da chuva pela janela aberta, porque não sou feito de chuva.
   Não se ouve o Outono...apenas se cheira, apenas se vê. Nem os pássaros cantam nem a morte das folhas são ais ou gritos. Caiem mudas...amarelas e castanhas. A Xica desfila em passeios de Outono.
   O verde que resiste, o amarelo que existe e o castanho que não desiste, trazem uma densidade de informação de cor ao cérebro que me limito a vê-lo como um todo, global, sem definir o que é verde, ou amarelo. Se o sol resolve aparecer pela manhã, as gotas de chuva que ficaram dormir na palma da folha, parecem pequeníssimas pepitas douradas, que pingam já despertas numa dança suave com o vento. Estradas nacionais, departamentais...a cada curva em zona rural os olhos são engolidos pelo que conseguem ver além da berma. O cavalo que corre louco ao lado, as vacas que olham á passagem da Xica. O cão que ladra e o aceno dos putos a ir para a escola a mendigar uma buzinadela, como isso os faça sentir respeitados e parte da outra parte da estrada. É nesses dias dourados de Outono, onde o verde é dourado e o castanho também. Que bom ter o privilégio de definir os contornos das cores, o corpo delas, a forma como pintam o mundo que tenho em redor. E é a morte de tanto...a morte de milhares de folhas que nasceram folhas e morreram folhas...tão anónimas e tão folhas que a maioria nunca esteve sob quem mirada de olho humano. Vive de mão dada á mãe, larga-a apenas para morrer. Que bom sentir e o cheiro da terra. Ouvir apenas silêncio. A chuva parou...arrasto luz para as malas do reboque, lavo a loiça e arrumo-a. Volto ao bastião-mor das minhas forças em retirada. Os ouvidos despertaram...sou invadido de sons característicos de parque. Motores de camiões-frigorifico a rasgar a noite, aquecimentos de parque num perpétuo bzzzzzzzzz adormecido. Pelo vidro do lugar em que trabalho, entra-me o cheiro a mijo encardido no asfalto do parque, o cheiro do gasóleo queimado nos aquecimentos de parque. Um camião inquieto que se procura parquear num qualquer cantinho, para trás, para a frente, mais motor, mais descargas de ar de travões ao manobrar...Nesta minha janela da esquerda não há Outono nem há cheiro a estrume e terra molhada que o sol evapora. Há apenas ruídos de dias de Outono.
   Fecho-me...o meu Outono é já a seguir, também eu me dispo e me deponho na cama. Como arvore desfolhada que se deita para que volte mais tarde a ser digna de folhas. Também eu procuro ter o meu corpo para vestir no dia a seguir...Ligo o rádio, há um fio de música que passa. Não a ouço, cheiro-a e respiro-a...e bzzzzzzz.

1 comentário:

Anónimo disse...

Continua a escrever, é bom viajar contigo através das tuas palavras... SR