quarta-feira, 23 de julho de 2014

Verão cinza

 


 
 
 
   Sr Fulano... Ao som de...
 
 
   Só hoje vou percebendo que a solidão interior me tolhe os sentidos e a alma. Só hoje percebo bem o dano e o caos que em mim se instalou. Só hoje entendo bem o que separa por vezes a menina dos olhos, do contacto visual directo com o mundo: lágrimas. Composição química indecifrável. Talvez o silêncio da Xica me fale também, dando parte triste ao dia. Seguimos órfãos da razão pela qual a Xica o é. Os pensamentos absorvem-me, o leitor de cds desobedece-me, não oiço o que quero e que me possa afagar a alma e acalmar um espirito revolto.
   Sinto-te a falta, sentimos-te a falta. Esforço-me por não me deixar derrotar mas torna-se difícil ignorar os dias cinzentos que pairam, a vontade de desistir e pensar a fundo se este trabalho me faz bem ou se me vai levar a precipitar o fim. Há frio que chega por entre os raios de sol e laivos de calor que me escorrem pelo corpo, a mascara cai-me e não tenho como ir disfarçando o que é mais evidente: neste camião viaja um homem imensamente só, que tem imensos amigos, mas que na ausência do elemento estanque, quase deixa descuidadamente escapar essas demonstrações de amizade. É a vontade de não querer ver, não querer sentir, não querer pensar. É a vontade de não estar, de não ser, de adormecer e fugir assim sem dar a dor á ferida. Não endureci o suficiente a minha capacidade de reagir. E sinto-me só, não por não estar rodeado do carinho de amigos e família, mas por no meio de tanta gente que me sorri, sentir a falta de uma pessoa. Uma só pessoa de quem se sente extrema falta no meio de tantas.
   Preparo-me para tentar passar bem as minhas ultimas quatro horas na casa dos trintas, daqui a apenas cinco horas serei quarentão, convencido que já vivi mais de metade da minha vida e quando a espremo, sinto dificuldade em ter algo realmente que valha a pena. Apenas encontro saudade, uma saudade que não reside na distancia das coisas, mas na simples e repentina quebra ou fractura de nós ou em nós, num desmoronar de forças e no abrir de crateras onde tudo se parece afundar. Não era o cenário que esperava para este dia de véspera do 40º aniversário, mas parece que até o corpo se afundou e anda no médico...
   Sinto uma extrema necessidade de ser eu...Nunca fui discutir ordenados ou pagamentos. Apenas quero tempo para ser eu mesmo, para ter uma vida, para ir atravessando algo que não seja o camião, que não seja a minha companheira de estrada. Tenho tido a felicidade de continuar a ter condições de tocar na banda onde toco desde os 15 anos. Entre ensaios, concertos, actuações, tenho tido sorte de conseguir. Não desejo apenas uma vida de amor ao camião, conhecer-lhe até os lamentos. Preciso de ser eu e não consigo...não estou a conseguir e ás vezes apetece-me gritar, ás vezes apetece-me ter um fim...porque ás vezes farto-me de mim mesmo e não sei conviver comigo mesmo...e faço por conviver com os outros. Não toco na banda por diversão. Não gosto da agitação de massas, gosto de musica, mesmo nas piores horas é lá que me escondo. Na noite do dia do funeral da minha avó, fui ao ensaio da banda. não que me alegrasse, mas na banda andam os meus amigos mais chegados, aqueles que queremos como a nós mesmos. E foi lá, a tocar, que encontrei aquela paz que precisava e saberia que a Clarinha teria gostado de saber que eu não faltei ao ensaio. Não fosse a música já não andaria na estrada. Mas enquanto puder tentar conjugar as viagens e a banda, vou servir quem sirvo. Mas sem deixar a minha vida. Talvez me sinta la bem. É parte da minha vida pessoal.
   Não sou pessoa de desabafar. Vejo o mundo demasiado carregado de problemas sérios e importantes, que acabo por preferir fechar-me, engolir, omitir e seguir, como se nada fosse. Mas no fundo, quase que me sinto bem aqui assim, a escrever, sem qualquer fio de raciocínio ou ordem de ideias...mas aqui, quase escondido de um mundo. Sim, sinto-me melhor a deixar os dedos falarem por mim do que a falar sem me conter e deixar-me quebrar numa fragilidade que ostento, sem que se veja num olhar distante. Aqui posso ver as palavras que realmente preciso de dizer, aqui, neste blog ficam os meus testemunhos do que penso e sinto. Sobre nada em particular e sobre nada em geral, porque são tantas as fugas de temas. Admito, vou ao fundo de novo, mas hei-de bater lá e subir. Mas vou subir.
   Vou só tratar de mim, da minha saúde...e volto.


1 comentário:

Ana Maria disse...

Li, com atenção, o teu texto, e congratulo-me que tenhas voltado a escrever. Não gosto é de te ver tão triste, tão desoladamente só. Compreendo-te, na tua angústia. Mas, um conselho de amiga, já entrada nos «enta». Tudo passa, tudo se dilui na bruma dos dias, até que reste só uma lembrança bonita. Desejo que reencontres essa metade que te faz falta, esse equilíbrio que torna tudo mais harmonioso nas nossas vidas. Mas até lá, lembro um poema de Gedeão, que te ajuda a perceber melhor a química da lágrima!

«Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.

Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.

Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.

Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:

Nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.»

Um beijo, com votos de um dia feliz!