Sr fulano de tal...
O calor aperta e a viagem inicia-se sem grandes perdas de tempo. Voltei a deixar voar o meu corpo numa deriva controlada a metro e meio do asfalto. Sinto-lhe o calor e a cor negra que o absorve. As vezes que subi a A25 ou as que passei o arame farpado das nossas fronteiras aínda não bastaram para que não saia sempre triste e em tons de despedida de um sol, de um país, de amigos e familia...é como tentar meter a vida numa mala e arrancar por dias consecutivos e ter a noção que ficam para trás. Assim que se passa a fronteira, seja ela qual fôr, o dia deixa de ser mais um dia e passa a ser um dia a menos para o regresso. É esta a única bagagem imaterial que trazemos e onde transportamos as pessoas e coisas que sabemos fazer-nos falta, sejam as circuntâncias que forem.
O dia começa a pousar...olho pelo espelho retrovisor e vejo o sol poente como que suspenso sobre a linha do horizonte, o céu incendeia-se e daí a pouco as luzes acendem...perde-se o sinal rádio da Antena 1, a rede de telemóvel já é sujeita a roaming e dá-se o "clique"...Fica Camões e entra Cervantes. Sintonizo a Rádio Nacional Espanhola e tento abstraír-me do sossego que já impera aí no meu interior. Será assim até Frankfurt, destino desta viagem que ainda realizo...com a tal bagagem imaterial que carrego em mim, mais enriquecida pela dupla alegria de encontrar duas pessoas que me leiem e que me reconheceram mal meti a cara de fora da camioneta depois de uma noite bem dormida por aqui, por ler o blog, e por ter reencontrado dois amigos que fiz ( os mesmos, familia Antunes) na última area de serviço da Alemanha quando já regressava a Portugal. Um grande e feliz momento, diluído num café tranquilamente tomado e devidamente documentado por fotos. Abro o porta-moedas com um gosto especial, abro a bagagem e arranjo um cantinho onde meter mais dois amigos que de forma curiosa conheci.
O dia fechou-se assim na fronteira de Aachen numa sessão fotográfica hilariante talvez aos olhos de quem nos visse programar a máquina fotográfica, clicar, pousar e ir a correr para o cenário e chegar á 5ª tentativa e nada...nada de jeito. Mas de todas as fotografias que se tiraram para perpetuar o momento, sobraram algumas que servem de esboço ao desenho do quão bom foi encontrar pessoas que estão de bem com a vida. Verbo sorrir em riste.
A manhã nasceu cedo...a luz da aurora invadiu-me a cama ás 5 da manhã. Arrumei a cama, abri cortinas e mostrei de novo a cabine ao mundo. Um duche, um café e munido de vinheta para circular no Benelux. Volto a ver o sol em crescendo pelo retrovisor enquanto desapareço de Aachen Bélgica dentro. O dia inspira. Paragem para abastecer no Luxemburgo e tempo para um café com um amigo de longa data, meu conterrâneo.
Mais uma pausa feliz. Anoiteci em Montargis, França, esticando ao máximo o horário para conseguir sair de França antes das 22 horas de hoje.
- É hora de acordar, são três horas e quinze minutos- diz-me uma voz feminina programada no despertador do telemóvel. Primeiro round: Eu 1 - Despertador 0. Quando me levantar procuro-o debaixo de um dos pedais... Desperta o outro telemóvel...é mais irritante e como não lhe chego deitado, ergo-me e pronto...empate e eu rendo-me á vertical. Avanço de madrugada para evitar os turistas franceses que gostam de invadir a estrada rumo a uma area de serviço fazer um piquenique...Com o dia chega também a parte mais larga da estrada, duas faixas desde Vierzon até Limoges, aumenta o tráfego e o calor. Umas obras e o cheirinho a verão nas filas que criam. Tempo para observar as pernas despidas que descuidadas se mostram a quem as vê sem quer de cima. Um cheirinho a seca e tempo perdido em filas desorganizadas originadas pelas deslocações das pessoas que viram chegar o dia de ir de férias, merecidas ou não, ei-los que estorvam e que se desorganizam.
- Catastrófe- digo eu em tom Ûcra-Lusitano. Não me vou safar assim. Mas quis a viagem continuar a ser agradável e assim consegui hoje, estar um pouco exposto ao frio nocturno de Alsásua, muito perto já da zona dos Pirinéus. Daqui a poucas horas volto á estrada com destino a Viseu e a parte material da bagagem que deixei, mas quebro aqui desde já a regra de só falar no final da viagem.
O cromatismo dos dias e das viagens insiste em coisas muitas vezes repetidas mas desta vez foi tão diferente: Fiz dois amigos e voltei a trazer a viola, ainda que em silêncio, ela veio comigo. Vem sempre...ás vezes sem cordas. Fiz dois amigos.
Esta foto, na proa de um navio, faz de mim uma espécie de...Tom Sawyer dos Camiões...e eu gosto!!!
sábado, 26 de maio de 2012
segunda-feira, 21 de maio de 2012
O lado de lá da outra vida
Srs Fulano, Sicrano e Beltrano de Tal...
Por uns tempos deixei de escrever, pelo menos aqui neste blog onde vou partilhando a vida que reparto em dose industrial com a Xica. Há outra parte da vida que parece adormecida quando passo a fronteira mas a cada momento desperta e aí lembro-me que há outra vida consagrada na minha e que não é de certeza dedicada á minha profissão. A verdade é que ultimamente as viagens eram iguais, não os destinos mas os pensamentos eram os mesmos, e perdi a vontade de vir durante uns dias. Sentia que o meu pai se esgotava rapidamente e assim que foi internado, decidi que íria saber se seria possível tirar uns dias de férias para poder estar no hospital todos os dias, de manhã e de tarde, junto dele. Fui o último de quem se despediu...libertou-se a 25 de Abril. Doze dias num hospital que pareceram anos. Não porque desejava quie o tempo passasse rápido, não, não é isso, pareceram anos no conteúdo das conversas que pude ter com um homem com o qual eu não vivi mas convivi. Pude dizer-lhe tudo o que sentia, pude estar ali calado á espera que daquele corpo já leve e cansado viessem palavras. Pude sentir a vela na mão...pude ver aquela chama que era forte ir perdendo no amarelo e ganhando mais o tom de pavio queimado, pude sentir a cada dia a temperatura a descer e as forças a despedirem-se. O meu pai partiu...é isso mesmo. Um dia chegou e um dia partiu e tal como todos também eu vou adiando a partida final, mas até lá vou chegando e partindo, vezes sem conta aqui e acolá, mas nunca foi a última vez e é isso que me empurra: contar a que não foi a última partida.
Durante dias olhei para fora desta janela. A perspectiva da foto era a mesma que a que os olhos do meu pai viam quando já desconfortável pela posição acamada do corpo, tinha na serra que se vê ao fundo a sua referência. Passei ali horas em pé, olhando para a rua e vendo a primavera instalar-se...ficava ali á espera que o meu pai acordasse e me visse. Piscava-lhe o olho e ele voltava a adormecer. O meu pai dizia que os hospitais sao sitios onde as pessoas estão tristes e morrem de noite. O meu pai não dormia de noite com medo de morrer de noite. Aguardava achegada de um dos dois filhos e então adormecia aos poucos...acordava, falava, cansava-se e adormecia. Esta janela de onde espreitava e narrava ao meu pai tudo o que via. Partilho-a aqui connvosco, uma vidraça diferente no lugar de para-brisas, mas uma janela com vistas para a vida e era por isso que o meu pai a queria aberta para que olhassemos todos por ela. Acho que só hoje descobri isso...
Voltei ás viagens e a dar a minha pele ao sol que já vai queimando. Voltei a deliciar-me na estrada e a sair encantado de alguns cenários que em viagem posso contemplar de um local previlegiado atrás do para-brisas. Não é uma vidraça como a de cima, mas é concerteza também uma janela para a vida que também deixo para trás cada vez que parto e que agarro cada vez que chego. Os dias virão melhores e eu cá estarei para me vestir da cor que o sol tem para dar.
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