segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

O minuto maior...


sr fulano de tal...
Passaram três semanas, quase 8000 kms sem que o solo pisado fosse Portugal. A viagem começou em Vieira de Leiria e depois daí os objectivos finas de viagem foram Ponferrada (Espanha), Treviglio (Itália), Vitória (Espanha), Dortmund e Dusseldorf (Alemanha), Bilbau (Espanha) e finalmente Avanca (Portugal). Deslumbrei-me imenso com o muito do mundo que os meus olhos puderam ver enquanto a cruzada não chegou ao fim. Mas também a saudade de casa pesa, os olhos carregados pesam e a cada dia a menos para o regresso é um dia a mais na nossa penitência...
Vieira de Leiria...entro na mata nacional. Nunca vim para estes lados, nem quando ando sem destino a passar uns dias de repouso em que nada é planeado. Vou para onde me dá na gana, se me apetecer amanhecer em Vila Flôr e anoitecer em Caminha só porque pensei que lá seria um lugar fantástico para acabar o dia, faço-o. Fiquei com vontade de ir para aqueles lados nos dias quentes do Verão...sozinho ou não, é lá que levarei a minha vontade...após descarregar e levar uma liçao de vida de sofrimento contido e mal escondido de um homem que afinal apenas quer esconder a fragilidade que a vida e as coisas menos boas com que por ela foi contemplado, segui, já "vazio" em direcçao ao local de carga.
Entro na N 109 direcçao norte...conheço esta estrada onde passei tantas vezes quando estava a ter instrução de conduçao categorias D+E. Tirei todas as cartas na tropa com excepção da ligeiros, que de resto ja tinha quando fui á Inspecção Militar. Lembro cada um dos instrutores...já os conhecia. Paro na Guia...vi uma loja que vende instrumentos musicais. Nao tinha cordas e precisava de cordas para a minha viola. Sinalizo a paragem, 4 piscas, o agente de autoridade observa e antes de me chamar já me vê ir na direcção dele:
- Bom, dia...sei que tou mal parado...é um minuto.Preciso de cordas e ali tem...tou de partida e isto ajuda-me naquelas horas...
Ele olhou e com um sorriso transmitiu-me a calma que precisava naquela hora...Só queria um minuto e ele deu-mo. Simples. Aquele minuto valeu de muito...mais que outros minutos que teve essa hora. Não é fácil para um camiao em segurança numa localidade. O custo elevado das multas que são aplicadas fazem-me muitas vezes adiar as coisas...e coisas tão elementares como ir a um multibanco. Aquele minuto dado pelo GNR iliminou algum pánico que poderia existir se simplismente abandonasse o camiao na faixa de rodagem, numa estrada nacional dentro de uma localidade como foi em Guia, Fig da Foz. Porque há sempre um ou outro que nao entende que se parei ali é porque seria para demorar mesmo pouco, há sempre quem nao entenda que se quiser ir a um multibanco terei de ir por o camião fora da localidade, parqueado em segurança, seguir até ao MB, nem que isso implique uma caminhada de meia-hora. E assim foi...mal saí do camião ouvi uma buzinadela. Falei com o agente de transito, entrei na loja, comprei dois jogos de cordas de nylon e saí sob o olhar compreensivo do agente que evitou ali as cenas das buzinadelas. Conclusão...consegui ao fim de um mês com a viola sem a 5ª corda resolver a situação.
Subo a A25...é terça-feira, o destino é Itália. Até á fronteira sinto o meu corpo pedir para não seguir como se as dores que se sentem fossem tão fisicas pelo que por vezes magoam...e ao passar o arame farpado tudo se torna mais distante...e a distancia de Salamanca para aqui torna-se igual, em certa forma, igual á distância que vai daqui até á China. Porque ao passar o arame farpado (fronteira) passamos a ser estrangeiros, passamos a ter roaming e o custo da saudade lembrado a cada telefonema e msg. E mandar uma msg de Salamanca (cidade a cerca de 110 km de Portugal) custa os mesmo 0.50€ que me custaria enviar a mesma msg da China ou da Samoa. Porque a lingua é diferente, a capacidade de expressão passa a ser reduzida e então, não conseguimos explicar como queremos, o que nos é por vezes solicitado quer por autoridades de transito ou minesteriais ou com certos clientes. Passa a ser distante porque diminuem os contactos com um mundo que criei para mim. Não me lembro de passar a fronteira para lá de sorriso aberto, mas lembro algumas vezes que a passei a chorar, como homem perdido, como que se o uico rumo que seguisse fosse apenas o da carga...custa-me. Quase se sente a solidão entrar e sentar-se ali ao lado. O baque que a solidão faz em nós quando se faz sentir é mil vezes superior ao bater de uma porta. E vemo-la ali...como puta vadia que me espera ali na fronteira e se instala no banco da direita e ali segue, de pés no tablier, como companheira. Aí, mal a rede do telemovel passa a ser estrangeira, eu meto musica...e dez minutos depois de estar para lá de Portugal, sou um homem que segue um rumo de vida e nao somente um rumo de carga rascunhada num CMR que a acompanha (CMR é documento que deve sempre acompanhar qualquer carga internacional, especie de uma guia.- Guia? Sim, não a Guia freguesia onde vende cords de nylon para a viola, mas sim a guia de carga). Ali cada dia de viagem não é mais um dia de viagem, é menos um dia de viagem. E cada cliente um objectivo que terei o prazer de superar e a marcha da "xaleca" lá segue.
Fim-de-semana na Iália...Fiquei numa area onde nem um colega Português parava...Passei a tarde de sabado dentro da cabine. Pelo rádio Cb lá ía falando com os "Tugas" que passavam no meu sentido mas que ainda tinham horário para trabalhar. Ao meu lado meia-duzia de motoristas Polacos, um Francês e um Checo. O frio que as expressões deles continham mesmo assim era superior ao do termómetro. Caíam os 1ºs flocos de neve na Xaleca. Não pensem que sou pouco sociável com os colegas de outros países, mas eles estavam na boa a falar a lingua deles e eu se nao fôr em Português não me sei exprimir como tal, o frio e o vento convidaram-me a ficar quentinho na cabine. Peguei na viola e cantei, até me cansar e até me apetecer fazer outra coisa qualquer que me permitisse passar o tempo sem que eu o contasse minuto a minuto, como tantas vezes aconteceu no passado e que me derrubavam por apenas ali estar...a contar minutos de horas que ainda teriam que passar até estar absorvido de novo pelo rumo...não meu, mas da carga.
Mas quando o rumo da carga é Portugal...quando sentimos que o rumo da carga segue paralelo a um rumo bem mais importante que é o rumo dos homens que mesmo sós não são vazios, que o sorriso volta, mesmo sem ser para saudar alguém. Sinto isso...sente-se isso pelos colegas Portugueses que passam e nos saúdam pelo Cb. Quem vem a descer para Portugal vem com uma vontade de trabalhar imensa, mas limitada pela consciência do excesso. Mas o espirito é que conta e é disso que estou a falar...os meus olhos quase riem quando na mensagem de carga o Bruno (meu operador) me aponta Portugal como destino. E canto sozinho, assumo a calma de quem sabe o caminho a percorrer...sem incertezas de ruas ou de distâncias. Apenas sabendo, tranquilo, que as placas a seguir são as que dizem Aachen, Liege, Valenciennes, Paris, Bordeús, Irun...Burgos e depois qualquer arame farpado. Desde que do outro lado seja Camões e não Cervantes.
E tantos kms depois o roaming fica na fronteira, a puta vadia salta fora para me aguardar de novo ali ou noutro qualquer lugar onde o arame farfado rompa alma e o coraçao quando pintado de fronteira que me separa. Sei que me hei-de arrepender de escrever isto, ou pelos menos questionar-me se o espirito de Natal mexe assim tanto comigo, mas até fico contente quando vejo a 1ª patrulha da BT/GNR...sem ter qualquer tipo de saudades da actividade deles, sei que pelo menos poderei ser multado em Português ou então compreendido por um homem que se sentiu compreendido pela outra parte do serviço: os condutores.
Tantas dias depois, tantas horas passadas e desmultiplicadas em minutos todos parecidos...mas nenhum tão importante do que aquele minuto concedido pelo sorriso compreensivo de um homem fardado que vigia a estrada, e que revisto na tela da memória me parece dizer:
- Vai lá...não é por um minuto que vais perder 3 semanas bem piores do que aquelas que essas cordas te podem proporcionar.

O meu amigo Joca, o outro, o tal que agora vai ás manif de Professores, dizia uma vez que a impressão geral que sentia da parte das pessoas pelos motoristas TIR era no sentido de que os motoristas seriam a outra parte do negócio do putedo. Seria então legitimo dizer que por vezes os agentes de trânsito são a outra parte da camionagem. Parece-me injustas as coisas vistas assim...

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